A atribuição do prémio “Personalidade” do ano pela APLOG a José Crespo de Carvalho foi o pretexto para a entrevista, que não se cinge à distinção. O professor catedrático e atual Presidente do Iscte Executive Education aborda os desafios atuais e futuros do setor, não sem primeiro refletir sobre o caminho feito e as “lições” aprendidas. Sobretudo é uma partilha sincera sobre valores, os seus, mas também os que devem nortear os logísticos e a logística, o que vai encontrar nesta conversa que assinala a rentrée, o tão aguardado regresso das pessoas e das empresas à normalidade dos dias depois do Verão.
Foi em julho que no âmbito do Prémio de Excelência Logística a APLOG entregou a José Crespo de Carvalho o prémio “Personalidade”, decidido em conjunto pelos três órgãos da associação e atribuído por unanimidade. “É alguém com uma atitude e um pensamento muito inquieto, muito inovador e muito independente, sem nunca deixar de ser um homem da logística”, sublinhou Alcibíades Paulo Guedes então, no momento de revelar o laureado. Agora, na entrevista, Crespo de Carvalho valida e destaca essa sua característica, confessando a dado momento que “Sempre fui inquieto desde os primeiros tempos. E sempre fui muito exigente para com a Logística. (…) Algumas vezes dei o murro na mesa. Ou muitas.” Contudo, são os incomodados que fazem o mundo avançar, não são os acomodados.
SCM – O prémio da APLOG, mais do que “Personalidade do ano” é uma distinção pela carreira que tem vindo a desenvolver, sempre ligado à logística e à gestão das cadeias de abastecimento, seja ao nível empresarial, seja ligado ao ensino. Teve oportunidade de acompanhar o “nascimento” da logística em Portugal, projetos marcantes, bem como profissionais e líderes nacionais emblemáticos. Algum ensinamento desses primeiros tempos que ainda hoje faz sentido para si, há? E uma ou duas lições que tenha retido ao trabalhar e lidar de perto com figuras incontornáveis da logística, que tenha guardado na memória e que queira partilhar.
Crespo de Carvalho – Na verdade, não é personalidade do ano. É um prémio carreira. Podia ter sido dado neste ou noutro ano qualquer. E 2023 nem foi um ano em que tivesse feito muitos desenvolvimentos em termos de supply chain.
Apontaria quatro aspetos que para mim foram essenciais sempre. Quer nos primeiros tempos, quer ainda hoje:
- Manter-me sempre atualizado. Estudar, fazer muito mais que o doutoramento, fazer formação executiva, a máxima que conseguir, ir a outros lados e universidades, estar em sala de aula ao lado muitas vezes de jovens e sendo eu apenas o que tem cabelos brancos. Não me importo. É a forma que escolhi para não me tornar obsoleto e aprendo imenso com os mais novos também.
- Procurar ler revistas profissionais e não apenas académicas. As revistas profissionais fazem muito por nós na medida em que nos trazem conhecimento prático. Revistas nacionais (a vossa) mas muitas internacionais.
- Manter sempre uma ligação a aulas mesmo estando noutras funções. As aulas permitem-me também um esforço contínuo de atualização.
- Fazer consultoria. Se não fizesse consultoria, e muita consultoria, não conhecia os problemas que se vão enfrentando nas empresas. Podem ser debates estratégicos com o board, podem ser conversas alimentadas por mim para definir investimentos, para desenhar projetos, para avançar para áreas de negócio, o que seja. Como podem ser projetos mais formais e demorados de reconfiguração de processos, de redesenho, de layout, de capacidade, de stocks, e por aí fora. Mas tem de haver consultoria.
Sempre fui inquieto desde os primeiros tempos. E sempre fui muito exigente para com a Logística. Sempre achei que se estava a fazer pouco e que devíamos fazer mais. E que podíamos! E que temos essa responsabilidade. Algumas vezes dei o murro na mesa. Ou muitas. Mas acredito que também foi por esse inconformismo e vontade de fazer mais que o prémio me foi atribuído.
A logística e a gestão da cadeia de abastecimento embarcaram na viagem da “transformação” há décadas e a evolução tem sido mais ou menos contínua. Contudo, o desafio atual é bem nítido e passa por 3 prioridades – criar resiliência, reduzir custos e cumprir os objetivos ESG – e nenhuma delas pode ser descurada. Como é que os profissionais de logística e supply chain podem gerir estas prioridades, aparentemente contraditórias, sem comprometer nenhuma delas? A colaboração e a tecnologia são imperativas para enfrentar estes desafios?
Reduzir custos foi sempre uma prioridade. Desde que comecei nesta área que a redução de custos é a primeiríssima forma de mostrar resultados. Podemos falar em serviço ao cliente, em prazos de entrega, em OTIF’s e por aí fora mas, no fim do dia, o cliente ou a empresa quer ver uma redução no custo. Portanto, essa é uma questão desde sempre. E todos sabem disso, académicos da área, profissionais da área e todos os que não são da área mas querem de nós resultados.
Há outro aspeto que poucos mencionam mas que deve ser dito. Todos querem que a logística e a supply chain funcione. Se funciona, tudo bem, não nos passam cartão, nem recebemos prémios ou palmadinhas nas costas. Mas ai daquele que, sendo responsável, deixe cair a logística ou a supply chain. Paga sempre cara a disrupção. Internamente porque estão sempre todos predispostos a apontar o dedo e externamente porque se falha a montante com fornecedores e a jusante com clientes.
Quanto à resiliência, direi que sim, mas se o termo é novo a lógica não é. Disrupção, continuidade do negócio, risco, e por aí fora, são trabalhados há muito em logística e supply chain. Arranjou-se um termo fancy para dizer que devemos voltar ao estado normal. A questão é que nem sempre este termo, embora percetível, é o real. Ou seja, um erro, uma falha, o que seja que corra mal, deve ser emendado. Porém, é bom que incorporemos a volta ao normal com a lição aprendida e, se possível, com mais conhecimento do que o que tínhamos antes. Por isso, nunca é só voltar ao normal. Será sempre um normal, espera-se, mais rico.
O ESG é na essência bom whishful thinking. Mas na essência. Depois temos máscaras e máscaras de ESG. Somos muito amigos do ambiente mas no dia-a-dia pouco ligamos ao ambiente. Somos muito preocupados com sustentabilidade mas no dia-a-dia pouco ligamos à sustentabilidade. E a governance, que talvez em empresas seja o pilar que poderia colocar os dois outros a funcionar, também não se lhe dá a devida importância. É um facto que são aspetos importantes. Mas, e sublinho, mas, enquanto as empresas não estiverem dispostas a monetizar à séria a formação das suas pessoas em ESG nada de muito diferente do que conhecemos irá suceder. Só para termos uma ideia com resíduos. Vamos ao Algarve e nas praias multiplicam-se as garrafas de plástico, não há ecopontos suficientes, as pessoas são selváticas na forma como despejam o lixo, não há triagem. E não precisamos ir ao Algarve. Precisamos de olhar para o que se faz na nossa rua e nas nossas casas. E porque nos queixamos muito, mas nas coisas mais simples não mudamos ou damos exemplos concretos, independentemente do que outros façam.
Mas sim, custos, resiliência e ESG são críticos para a supply chain.
“Temos máscaras e máscaras de ESG. Somos muito amigos do ambiente mas no dia-a-dia pouco ligamos ao ambiente. Somos muito preocupados com sustentabilidade mas no dia-a-dia pouco ligamos à sustentabilidade. “
Muito impulsionada e mediatizada pelo ChatGPT, a inteligência artificial (IA) está na ordem do dia e promete revolucionar o mundo das empresas e também as cadeias de abastecimento. Como é que olha para esta nova realidade? Há mais prós ou mais contras para a supply chain?
Há muitos bots e não apenas o ChatGPT. Os chatbots e o prompt engineering e a forma de termos à mão, em self service, inteligência artificial é fantástica. Como é óbvio, vejo com bons olhos. Temos de nos adaptar, temos de mudar de novo e incorporar tudo isto no nosso dia a dia. Muita coisa é divergente. Mas para lhe dar exemplos, posso dizer-lhe que já dei aulas com chatbots e que os alunos gostaram. E posso dizer-lhe que já estou a orientar teses com inteligência artificial generativa e os alunos ficam meio atónitos por ser eu a propor o tema e não eles. É o que é. É preciso mudar? Temos novas oportunidades? Vamos a elas. Não aproveitar seria um desperdício.
Pessoalmente consigo ver muitos prós. Alguns contras. Mas o determinante para a supply chain neste momento é tirarmos o melhor partido destas ferramentas e olharmos para os prós. Já. Amanhã será tarde. E isto significa que temos de andar depressa dada a quantidade de informação e soluções estruturadas e produzidas por IA que já são possíveis e o número de qualidade dos chatbots que temos à disposição.
“Já estou a orientar teses com inteligência artificial generativa e os alunos ficam meio atónitos por ser eu a propor o tema e não eles. É o que é. É preciso mudar? Temos novas oportunidades? Vamos a elas. Não aproveitar seria um desperdício.”
E ao nível do ensino, que desafios coloca? Como se equilibra a balança? Conseguiremos olhar para a IA numa lógica colaborativa e não tanto numa perspetiva de duelo Humanos vs. Máquinas?
Duelo? Não. O homem é e será sempre o homem. Não é substituível. O homem, como sempre, irá dominar a “máquina” e aproveitá-la para o melhor uso. Sempre foi assim em todas as revoluções. Basta olhar para a história. Acho que é um debate que não faz sentido. A IA está cá e é preciso usá-la em força. O homem é o homem. Sentimentos, coração, empatia, compaixão, amor, lágrimas, esforço, tudo continuará a fazer parte do homem. À “máquina” o que é da “máquina” e ao homem o que é do homem. E que saibamos tirar o melhor partido da “máquina” (da IA).
Claro que há desafios mas, caramba, se o homem não tiver desafios e não se desafiar, que raio de vida quer ter? Apenas passar pela vida sentado num sofá? Nada nas aulas me assusta. Se tiver IA via chatbots para dar aulas ficaria preocupado se não a utilizasse. Impensável. Vamos em frente. E vamos continuar a ter aulas e boas aulas que é o que é preciso. E proximidade entre humanos, para tirarmos o melhor partido da IA.