Após anos sucessivos de perturbações sem precedentes na supply chain, 2024 continua a não dar tréguas aos gestores da cadeia de abastecimento e promete não lhes fazer a vida fácil. O alerta é de Carlos Cordon, professor do IMD, no artigo publicado na revista do Institute for Management Development, que chama a atenção para cinco aspetos a que quem gere a supply chain deve estar atento.
Os líderes da cadeia de abastecimento nunca passaram por uma situação tão difícil. A COVID-19 causou perturbações sem precedentes e foi seguida de perto pela invasão da Ucrânia pela Rússia, que teve um impacto direto no fornecimento de matérias-primas e provocou um aumento dos preços da energia, fazendo disparar globalmente a inflação.
Segundo reflete o académico na publicação do IMD, com os desafios atuais e os novos que se perfilam no horizonte, quem esperava pela bonança já em 2024 tem fortes probabilidades de ficar desapontado. Vamos ver porquê.
Em primeiro lugar, continuam a fazer-se sentir as consequências das perturbações na cadeia de abastecimento. Os produtores e retalhistas de todo o mundo esperavam que, em 2024, as cadeias de abastecimento regressassem finalmente às rotinas estáveis da era pré-COVID-19. Infelizmente, nessa ótica, o ano pouco trouxe de novo e tem-se vindo a assistir a uma espiral de custos logísticos devido aos confrontos militares no Mar Vermelho, importante rota de comércio global.
Volatilidade e incerteza
Os efeitos desta volatilidade continuarão a repercutir-se em toda a economia mundial, diz Carlos Cordon, e “embora exista um desejo generalizado de regressar a um sistema em que grossistas e retalhistas acordem preços por períodos prolongados, esta continuará a ser uma área da economia que coloca grandes desafios.
O académico dá o exemplo de França, onde a prática consiste em fixar anualmente os preços dos produtos alimentares através de um processo de negociação. E explica que o grupo Carrefour teve um conflito com o (agora antigo) fornecedor PepsiCo. Como resultado, o Carrefour recusa-se a armazenar os produtos da PepsiCo, descrevendo como “inaceitáveis” os aumentos de preços propostos por esta última para 2024. No ano passado, uma disputa semelhante levou o retalhista britânico Tesco a retirar os produtos Heinz das suas prateleiras.
Os grossistas argumentam que precisam de se proteger contra a volatilidade contínua nas suas cadeias de abastecimento. Os retalhistas insistem que estão a tentar proteger os consumidores e que as suas próprias margens já sofreram um golpe substancial em consequência disso.
A adoção de preços mais dinâmicos parece ser a única forma de ultrapassar esta situação, sendo que grossistas e retalhistas poderão ter de aceitar acordos de preços a mais curto prazo, mesmo que isso não favoreça nenhuma das partes.
Não menos importante neste contexto é a crise desencadeada pelo aumento do custo de vida. O professor do IMD lembra na sua reflexão que embora a inflação tenha abrandado consideravelmente em grande parte da Europa, é provável que os consumidores (e, em particular, as famílias) sintam apenas um alívio parcial, na melhor das hipóteses. Milhões de europeus, cujos empréstimos hipotecários a taxa fixa terminam este ano, verão as suas despesas mensais aumentarem drasticamente quando forem obrigados a cumprir as suas obrigações com uma taxa de juro significativamente mais elevada.
As empresas que lidam diretamente com o consumidor serão afetadas de muitas formas diferentes, mas a situação no segmento dos supermercados é de particular interesse. Neste segmento, muitas organizações estão a questionar a sensatez das máquinas de pagamento automático introduzidas. O lançamento destas máquinas reduziu certamente os custos de mão de obra e pode ter tido um efeito positivo no que diz respeito à comodidade do consumidor, mas os sistemas de auto-pagamento apresentam, de facto, maiores oportunidades de furto, como reflete o professor Carlos Cordon.
“De facto, as taxas de perda nas lojas que utilizam caixas automáticas são mais de 20 vezes superiores às das lojas que utilizam exclusivamente caixas manuais. Numa altura em que tantos consumidores se debatem com dificuldades financeiras, a tentação de omitir discretamente a leitura de alguns artigos que vão para os sacos de compras, mesmo para aqueles que nunca considerariam a hipótese de furto em circunstâncias normais, pode ser demasiado forte para resistir. Os furtos acidentais, em que os compradores não conseguem, involuntariamente, digitalizar corretamente os artigos, também são comuns”, salienta.
Em última análise, a tecnologia mais recente pode ser a solução, com algumas lojas a adotarem agora um sistema em que cestos e carrinhos inteiros podem ser lidos de uma só vez. Entretanto, alguns retalhistas estão a recuar na implementação de caixas automáticas.
Sustentabilidade e sazonalidade
Este poderá ser o ano em que os consumidores europeus se verão transportados de volta a um tempo em que os produtos fora de época não estavam disponíveis nas suas lojas locais.
O abandono das cadeias de abastecimento alargadas, em que qualquer uma de uma multiplicidade de peças em movimento pode dar aos retalhistas uma dor de cabeça em termos de preços, milita contra a disponibilidade durante todo o ano. Muitos retalhistas poderão já não estar preparados para se abastecerem junto de produtores geograficamente distantes.
Do mesmo modo, o pêndulo da sustentabilidade continua a oscilar. Os defensores do ambiente continuam a atacar os retalhistas dispostos a continuar a deixar uma grande pegada de carbono ao acumularem quilómetros aos alimentos que comercializam: o transporte de alimentos pode agora ser responsável por um terço das emissões de gases com efeito de estufa do setor. As ONG continuam a preocupar-se com as práticas laborais dos fornecedores sediados nos países em desenvolvimento.
Perante este cenário, alguns supermercados europeus estão cada vez mais receosos de oferecer produtos fora de época. Mesmo que os fornecedores de países como Espanha, que investiu muito na produção em estufa, consigam colmatar a lacuna, os retalhistas de outros mercados preocupam-se com a potencial reação negativa dos clientes que não ficam impressionados com produtos que duvidam terem sido produzidos localmente.
A luta entre marcas
Num ambiente económico difícil, as vendas dos produtos de marca própria dos retalhistas aumentam quase sempre à custa das marcas mais caras. A atual recessão não é exceção, com as marcas de distribuidor mais uma vez em ascendência – mas, desta vez, há uma nova dimensão na dinâmica.
“Cada vez mais, os consumidores não consideram os produtos de marca de distribuidor como inferiores: 60% dos compradores europeus consideram-nos atualmente de qualidade semelhante à dos produtos de marca, de acordo com um estudo. Os consumidores que mudam para as marcas de distribuidor em busca de uma poupança de custos podem acabar por ficar com estes produtos se sentirem que há pouco ou nenhum compromisso em termos de qualidade, aumentando a pressão sobre as marcas que esperavam um regresso à norma assim que a pressão sobre os consumidores diminuísse”, esclarece Carlos Cordon.
O académico não exclui a possibilidade de em 2024, podermos começar a ver marcas mais pequenas desaparecerem definitivamente – ou, pelo menos, serem postas à venda – porque os fabricantes decidiram que as suas margens já não são sustentáveis e que os custos de marketing são demasiado elevados.
O desafio europeu do nearshoring
Os fabricantes de sectores como o automóvel e as TI têm um problema no que diz respeito à Europa. Reconhecem o imperativo da produção nearshoring – a pandemia expôs as fragilidades das complexas cadeias de abastecimento globais e a excessiva dependência da China – mas a sua concretização apresenta-lhes dificuldades práticas.
Na América do Norte, o México oferece uma base óbvia de baixos custos na proximidade do importantíssimo mercado dos Estados Unidos. Na Europa, pelo contrário, a escolha do local certo para uma nova fábrica é menos clara. Os elevados custos laborais nos mercados mais desenvolvidos são para Carlos Cordon um fator dissuasor, tal como as incertezas geopolíticas nos locais periféricos.
Na Europa de Leste, a sombra da crise ucraniana e o fantasma da guerra é grande e tem peso. Na Turquia, o risco político continua a aumentar e a inflação está fora de controlo. Os mercados do Norte de África também estão repletos de dificuldades.
O professor do IMD considera que a Polónia e Portugal possam estar entre os vencedores, com ambos os países a lutarem arduamente para atrair os fabricantes que contemplam uma estratégia de nearshoring. Mas a concorrência será dura, o que levará os governos a intervir com incentivos e até com apoio financeiro direto.
Em 2024, os fabricantes terão, portanto, algumas decisões a tomar e nem sempre o que parece ser a solução óbvia o é, de facto, já que as regras neste gigante tabuleiro muda a uma velocidade estonteante.