“A logística é uma guerra com arte” é uma coletânea de artigos de opinião publicados ao longo da última década pelo atual presidente executivo da APAT, António Nabo Martins. São mais de 60 textos sobre os transportes e a logística, com especial foco no modo que o antigo diretor da CP Carga e da Medway trata por tu – a ferrovia – e a sua articulação com os outros modos de transporte. O livro foi o pretexto para a conversa com o dirigente associativo ao longo da qual fica claro que muitos dos problemas mantém-se, pois são estruturais. No seu entender, o novo ciclo político é decisivo e não há tempo a perder.

 

Publicar em livro uma coletânea de mais de 60 textos e artigos de opinião publicados ao longo de dez anos, porque continuam atuais, quer dizer alguma coisa sobre o atual estado de coisas quando olhamos para o transporte de mercadorias e para a logística. Entre o projetado e o realizado, onde é que estamos exatamente?

Bom, essa pergunta é a de um milhão de dólares. Onde é que estamos? Agora temos que esperar para ver, porque a maior certeza que temos é que provavelmente vamos ter um panorama político a partir de março completamente diferente. E não sabemos se as apostas vão manter-se, ou não, naquilo que estava em cima da mesa e calendarizado.

Em termos de ferrovia e da intermodalidade, o que necessitávamos era de uma oferta ferroviária diferente no país. Espanha, que não é muito longe, está a canalizar uma série de verbas que vai buscar a outros setores ligados à área dos transportes, mas menos sustentáveis, para motivar as pessoas a transferir as cargas para a ferrovia. Em Portugal isso não está a acontecer, bem pelo contrário. Isto não é contra ninguém, mas a verdade é que baixámos as portagens em algumas autoestradas, em nome da coesão territorial, é verdade e é merecida, mas essas verbas que baixámos nas autoestradas, por exemplo, deviam ser canalizadas para incentivar mais intermodalidade no país.

Por outro lado, não pode haver intermodalidade se não tivermos condições para tal, e quando falo em condições falo em portos marítimos, em portos secos perfeitamente adequados ou terminais de carga, onde possa fazer-se a transferência da carga. Nós defendemos que deveríamos ter perto de cinco terminais principais no eixo atlântico, compensados com uma rede mais periférica de terminais, mais pequenos nalguns casos, para permitir desta forma conseguirmos fazer chegar as mercadorias às pessoas do interior e, já agora, em nome da tal coesão territorial, elas chegarem lá nas mesmas condições.

Com o atual estado de coisas, o que vemos é que até os nossos operadores ferroviários estão a fazer uma aposta maior em Espanha do que em Portugal, porque aqui ao lado estão a ter mais possibilidades para desenvolver o seu negócio ferroviário. Até arrisco dizer que neste momento até temos um bocadinho menos do que tínhamos, porque a verdade é esta: não há apoio e não conseguimos estrategicamente definir o que é que queremos. 

A entrada em funções, depois das eleições em março, de um novo governo pode ser o momento para implantar uma estratégia para o setor da logística?

Há muito tempo que a APAT defende a criação de uma secretaria de Estado, ou de uma direção-geral da logística, para que possamos definir estrategicamente aquilo que faz falta ao país. Obviamente que o transporte rodoviário é muito mais flexível, faz o door to door, está na first mile e na last mile, e na ferrovia isso não é possível, mas conseguem-se soluções através da intermodalidade. Portanto, por que não apostar na criação de parcerias estratégicas colaborativas entre rodoviários, operadores logísticos e disponibilizar ao mercado ofertas globais, consertadas?  Não vale a pena andarmos aqui a tentar passar por cima uns dos outros, porque depois o conhecimento e a competência acabam por vencer essas ultrapassagens pela direita. Acredito que o caminho é mesmo sermos mais parceiros, mais cooperantes e obviamente competentes.

Portanto, será decisivo após as eleições perceber como é que o novo Executivo perspetiva o futuro do setor.

Não há muito mais tempo a perder. Temos que encontrar soluções para ultrapassar as atuais dificuldades, para o bem de todos. Se calhar temos que ter uma abordagem mais estratégica e mais cooperativa, no sentido de cooperação.

Ainda há tempos, numa conferência, o presidente de uma associação dizia que na zona onde vive todos os dias tinham lá 300 camiões para carregar e ir para Espanha. Ora, se nós conseguíssemos fazer um comboio para Espanha, já só teríamos 270, porque um comboio normalmente equivale a 30 camiões. E é esse caminho que, enquanto país, deveríamos perseguir, como outros países a nível europeu estão a fazer, criando incentivos para que as empresas mudem do camião para o comboio. Estamos a falar do comboio e do camião, mas podemos falar do short sea shiping, que é outra solução intermodal em que vamos ter que apostar.

Olhando agora para aquilo que são os desafios dos transitários e a atual situação do mercado, é impressão ou o setor está mais dinâmico que nunca?

O setor está, de facto, a mexer e muito dinâmico. Temos também vindo a assistir à entrada de novos players em Portugal, e mesmo na APAT em 2023 entraram para a associação cerca de 12 empresas, no ano anterior tinham entrado 10, o que significa alguma coisa.

A pandemia trouxe a perceção de que o transitário português não é um transitário nacional, é um transitário global e a verdade é que cada vez mais os nossos transitários acabam por se internacionalizar, sem terem necessidade de sair do país. Ou seja, as suas empresas estão em Portugal, mas eles estão a fazer negócios em todo o mundo, sendo que alguns nem passam por Portugal.

E Portugal tem algumas vantagens neste campo. A primeira é geográfica, pois se somos periféricos na Europa, também é verdade que estamos aqui neste importantíssimo corredor que liga à Ásia e à América. A segunda é sermos muito flexíveis, dominarmos bem o inglês e termos grande facilidade de adaptação a outras línguas. Há uma palavra que só nós é que usamos e que nalgumas situações é determinante: “desenrasca”. Ou seja, quando precisamos de encontrar uma solução, às vezes complicada ou mais difícil, encontramos sempre um caminho. Numa primeira fase, até pode não ser o melhor ou o mais eficiente, mas depois, com o tempo, consolidamo-lo e as coisas acontecem.

Também temos vindo a assistir à entrada de muitas empresas brasileiras em Portugal e na  Europa, sendo que nós estamos a funcionar como uma porta de entrada nessa estratégia, pois as empresas brasileiras aproveitam esta capacidade que os portugueses têm com as línguas. O mercado da América do Sul está a ter também um crescimento interessante, assim como a América do Norte  e Portugal está no centro de todos estes movimentos.

As empresas que têm entrado, muitas delas são empresas com capital estrangeiro, que acabam por comprar ou fundir-se com empresas nacionais e, não menos importante, são empresas que procuram a APAT, o que de alguma forma atesta o trabalho que temos vindo a fazer, dinamizando a atividade transitária, fazendo-a crescer e dando-lhe relevância.

Estamos próximo dos associados, estamos próximos do mercado, próximo das associações. Temos conseguido mostrar a importância do transitário para qualquer empresa, evidenciando que este pode ajudar as empresas a chegar ou estabelecerem-se em outros mercados, já que através da sua rede de agentes o transitário auxilia as nossas empresas e contribui para que cheguem lá de uma maneira mais segura e mais fácil também. Outro aspeto positivo é o sangue novo que está a entrar no setor. Pessoas mais jovens, mais viradas para as questões tecnológicas e da digitalização e conscientes da necessidade de modernização.

E para o futuro?

Temos que fazer este caminho da digitalização, não há volta a dar e também a missão, ou o papel, de tentar influenciar aquilo que são as questões mais políticas e a necessidade de uma estratégia logística nacional. Mas também temos que ir a outras áreas. Por exemplo, olhar para aquilo que é a Autoridade Tributária e Aduaneira e encontrar formas para que as nossas empresas se relacionem de uma forma mais ágil e mais eficiente, porque ainda vamos perdendo muita competitividade relativamente a processos burocráticos. E temos que trabalhar todos juntos para ultrapassar essas questões. Há problemas que só são problemas porque as várias entidades e parceiros não conversam e, por isso, não se encontram soluções.

Também criámos já no final do ano o Fórum Nacional de Carga Aérea precisamente para juntarmos entidades oficiais, empresas, prestadores de serviços e tentarmos ultrapassar os problemas que existem à volta da carga aérea. É um parente pobre da carga, porque só significa 3% dos negócios internacionais que se fazem, mas depois em termos de valor deve valer quase 30%.  Para 2024 a nossa estratégia é, como sempre, antecipar, prever, informar e apoiar a nossa atividade, as nossas empresas e o setor.

Pode ler a entrevista completa na SCMedia News #48.