Baixos salários, longos períodos de ausência e más condições de infraestruturas para pernoitar estão a afastar os mais jovens da profissão de motorista e, quem sabe, a potenciar a automação do setor. Perante este cenário permanece a questão: o que reserva o futuro ao motorista de pesados de mercadorias?
O setor do transporte rodoviário de mercadorias é a espinha dorsal da indústria logística, e da economia de qualquer país, e a receita que gera representa 3% do PIB global. Esta é uma das conclusões do estudo “Driver Shortage Report 2023 Freight – Global”, da The International Road Transport Union (IRU). A peça fundamental que faz esta indústria andar para a frente é os motoristas. Em muitos casos, são o último elo de ligação entre a empresa e o cliente, e sem eles, o mundo pode parar.
A escassez de motoristas é um problema real que está a afetar o setor em todo o mundo. De acordo com o relatório, a nível mundial, existem 3 milhões de vagas por preencher, e ainda que tenha aumentado, na Europa e nos EUA registou-se uma quebra, uma vez que a procura por motoristas diminuiu devido à inflação que potenciou uma redução da procura por transporte. No entanto, a escassez mantém-se como um problema estrutural em todas as regiões. Na grande maioria dos países, entre 55 a 75% das transportadoras enfrentam sérias dificuldades em encontrar motoristas.
Este problema gera consequências significativas para a indústria logística e para a economia, nomeadamente o aumento das tarifas de frete e inflação, disrupções na cadeia de abastecimento e/ou atrasos na entrega, desaceleração do crescimento do PIB e a consequente diminuição da competitividade do transporte rodoviário, aponta o estudo.
A raiz do problema
Portugal é um dos países onde se sente esta escassez de profissionais. Edgar Melo, dirigente nacional da Federação dos Sindicatos dos Transportes e Comunicação (FECTRANS), indica quais os motivos que podem estar relacionados com este problema. “Ao longo de algumas décadas apostou-se numa política de baixos salários num setor de elevada exigência física e psíquica, associada a uma quase selvajaria na organização dos tempos de trabalho que obriga a longas jornadas laborais, a longos tempos de ausência que não permitem a conciliação da vida profissional com a familiar, a poucas condições para realizar a higiene pessoal, e as cada vez mais difíceis condições de acessos a serviços de restauração”.
Após a entrada em vigor do novo Contrato Coletivo de Trabalho Vertical, em 2018, já se registaram melhorias a nível salarial e de organização de tempos de trabalho. A medida foi renovada em janeiro deste ano e já se nota “uma grande preocupação no sentido de manutenção e captação de trabalhadores para o setor”. Contudo, confessa que “ainda há um longo caminho a percorrer”. Esse caminho passa por aplicar algumas medidas de forma a “contribuir para a dignificação da profissão (…) que garantam não só a qualidade de vida profissional, mas também a sua conciliação com a vida familiar”, tais como: “o respeito pela mulher e homem assegurando condições básicas para a higiene pessoal e segurança, pois em Portugal há um grande défice de instalações que o permitam (…), a valorização das ajudas de custo para fazer face às despesas associadas às deslocações, a valorização salarial, e o respeito pelos tempos de descanso e recuperação do trabalho”, indica o responsável.
Já para Anacleto Rodrigues, secretário da direção e porta-voz do Sindicato Independente de Motoristas de Mercadorias, “os motoristas são a chave do funcionamento de todo o setor dos transportes”, mas não considera que haja falta de mão de obra. “Não há escassez de motoristas. Há sim, cada vez mais, profissionais que optam por abandonar a profissão”. Destaca como principais obstáculos a elevada carga horária, remuneração-base pouco acima do salário mínimo nacional, falta de condições nos locais que visitam durante a sua atividade, e falta de infraestruturas de apoio para pernoitar em segurança.
Para atrair ou manter mão-de-obra neste setor é necessário rever e melhorar algumas das condições de trabalho. Os especialistas em recrutamento que se dedicam a este setor têm uma tarefa dificultada no momento de contratar porque as condições não são tão apelativas quanto deveriam. “A contratação de um motorista para transporte internacional é sempre mais difícil devido ao tempo que deverá passar fora de casa, longe da família, condições desfavoráveis e fraca segurança nas áreas de serviço onde devem pernoitar (roubos de mercadorias, assaltos, agressões)”, explica Juan Soto, diretor de recursos humanos para Espanha e Portugal da Narval Logística Frigorífica. Destaca a importância de salários mais altos e contratos mais longos para manter os profissionais no setor.
Ainda assim, há ainda outro fator que influencia a entrada de novos talentos no setor, como explica Carlos Julião, chief human resources officer da LASO Transportes. “Em termos financeiros, qualquer jovem que queira enveredar numa carreira de motorista profissional terá de investir ‘à cabeça’ mais de 3.000 euros para ficar dotado em termos documentais para desempenhar legalmente a função de motorista (carta de condução e Certificado de Aptidão de Motorista, formações mínimas)”. Além disso, indica que poucas empresas estão estruturadas para incluírem motoristas sem experiência nos seus quadros, e que lhes possam proporcionar tempo de aprendizagem adequado “sem existir grandes preocupações de qualidade de serviço, cumprimento de prazos determinados pelos clientes, ausências de sinistros e danos em mercadorias”.
Daniela Lourenço, brand leader na ManpowerGroup, aponta os mesmos motivos por detrás da escassez de motoristas: baixas remunerações, ausência, longas horas de condução, pouca flexibilidade, stress, elevados tempos de espera em cargas e descargas, e a necessidade de um conhecimento apurado da legislação ao nível das cargas, tempos de condução, descanso, ou funcionamento dos tacógrafos. “Abordar estes desafios da forma certa é relevante, nomeadamente em aspetos como a necessidade de se humanizar a profissão, apostando no conforto e na segurança dos veículos”, sugere. De forma a atrair ou reter talento, deverá apostar-se em salários mais competitivos e melhoria dos pacotes de benefícios, através de bónus de admissão, incentivos em dinheiro ou seguros de saúde de forma a que “o setor consiga ultrapassar a estrangulação em que se encontra”, explica.
Onde estão os jovens?
De acordo com o estudo, a nível global, a proporção de motoristas com menos de 25 anos está abaixo de 1%, chegando a menos de 5% na Europa. Os dois países com maior proporção de motoristas com menos de 25 anos são a China (17%) e o Uzbequistão (25%). Na maioria dos países, a proporção de motoristas com mais de 55 anos é significativamente maior do que a proporção de motoristas com menos de 25 anos.
O transporte de longas distâncias é uma condição que não é apelativa para os mais jovens. Juan Soto afirma que deveriam ter um salário base mais alto e subsídios mais elevados dos atualmente disponíveis. “Há anos, um motorista do transporte internacional era uma profissão muito bem vista, e eles podiam até comprar a sua casa com o seu salário mensal. Infelizmente, esta não é a realidade agora”.
Por sua vez, Carlos Julião assume que este é, de facto, um desafio. “Atualmente, já são poucos os novos motoristas que avançam para esta profissão por vocação, ao contrário do que acontecia no passado”. E considera uma tarefa “bastante difícil” levá-los a ingressar no transporte internacional. Considera que se deveria apostar na criação de cursos profissionais para esta profissão para que, entre 25 a 30 anos, se possam “colher frutos” e se comece a encarar “como uma profissão de enorme responsabilidade e até dotar a mesma de mais requisitos de profissionalização com o devido reconhecimento, quer no setor, quer na sociedade”.
Daniela Lourenço explica que as ações de atração de talento têm de ser ajustadas ao tipo de público. Tornar a profissão mais atrativa para os jovens passa por dar visibilidade à evolução tecnológica, destacar a transição para modelos mais sustentáveis, e comunicar as perspetivas de crescimento e de carreira. Para os mais velhos é necessário assegurar uma maior flexibilidade e reconhecer que a sua experiência pode tornar-se crucial para a passagem de testemunho.
“As empresas têm, por isso, de renovar as suas propostas de valor, procurando incluir fatores que equilibrem os momentos de ausência das famílias e amigos (como mais dias de folga ou diferentes mapas de horários), reforçar os elementos de sustentabilidade associados à transição para novas formas de combustão, desenvolver percursos de carreira motivadores, e reforçar a remuneração e benefícios”, sugere a responsável. No entanto, tudo isto gera custos que devem ser equilibrados com a rentabilidade das empresas, “o que torna este exercício extremamente desafiante num setor caracterizado por uma elevada concorrência e necessidade de otimização de custos”, reconhece.
“Sem nós, o mundo para”
Luís Marques da Silva, de 56 anos, é motorista da empresa Transportes Rama há cerca de 31 anos e reconhece que “sem nós [motoristas], o mundo pára. Somos muito importantes para o desenvolvimento do país”. O profissional ingressou na empresa à procura de financiamento para atingir objetivos pessoais, como comprar uma casa e providenciar um melhor futuro para os seus filhos. Efetua transporte de longo-curso e chega a ficar entre seis a nove dias fora. Embora reconheça que não é fácil estar longe, já está habituado. Esta é uma predisposição que não reconhece nos jovens hoje em dia. “Não têm tanto interesse em efetuar estes percursos porque ficam longe, e não podem estar com a família e com os amigos ao fim de semana”, e acredita que nem o estímulo financeiro é suficiente para levá-los a ingressar na profissão. Luís tem vindo a progredir na sua carreira dentro da Transportes Rama que, segundo o motorista, presta esse tipo de atenção aos seus trabalhadores, e esse é um benefício que ainda o atrai a manter-se na empresa e na profissão.
A especialização da profissão é importante, pois sem ela, não há atividade de transporte, segundo José Bourbon, coordenador geral do Instituto Profissional de Transportes, Escola Profissional de Loures (IPTrans). De acordo o responsável, a procura é elevada, mas por parte das empresas de transporte, e não pelos próprios trabalhadores, devido à exigência da profissão e longos períodos de ausência. Mas este não é o único entrave. “Existe ainda o problema dos custos do acesso à profissão, sabendo-se dos elevados custos de formação para a obtenção do CAM”, salienta. No entanto, será possível ultrapassar a dificuldade destes custos, uma vez que a recente integração do CAM no Catálogo Nacional de Qualificações, com a transformação dos módulos em unidades de formação de curta duração (de 25 e de 50 horas), permitirá o financiamento da formação através dos Programas Operacionais. Contudo, reconhece que a atração da profissão é onde está o verdadeiro desafio.
Veículos autónomos: realidade breve e imutável?
Uma das consequências a longo-prazo estimadas para a indústria logística e economia geradas pela escassez de motoristas, apontada pelo estudo é a aceleração da automação. Edgar Melo, assume que as evoluções tecnológicas ajudam a resolver problemas e a aumentar a eficiência. “Não no imediato, mas poderá efetivamente resolver uma parte do problema na cadeia de distribuição. Penso que na fase final da cadeia de distribuição ainda levará uns bons anos para se tornar possível. Esta situação, a concretizar-se, colocará o lado humano de parte”.
Anacleto Rodrigues também acredita que estamos longe do surgimento de veículos autónomos, pois para isso acontecer é necessário retirar da equação o fator humano, e ainda é necessário para controlar e posicionar o veículo para a operação de carga e descarga. “Não tenho dúvidas de que esse dia chegará, mas nesse momento não será necessário ter um motorista a bordo para contactar com o cliente, pois o processo de receção automatizada ao motorista já hoje está mais avançado do que os veículos autónomos (…)”, assume.
Já Carlos Julião discorda do dado apontado pelo estudo, uma vez que acredita que veículos pesados autónomos “nunca será uma realidade nos próximos 20 a 30 anos”. Ainda que haja autonomia nos veículos que potencie e proporcione o cumprimento dos tempos legais de condução e pausas, menos acidentes de viação, maior segurança e fiabilidade no transporte, “terá sempre que existir a bordo dessas viaturas alguém a comandar um conjunto mais restrito de comandos. No entanto, não creio que, pelo menos na Europa, estejamos preparados para avançar para uma autonomia total dos veículos sem ninguém a bordo”. Porém, acredita numa “autonomia parcial”, que implicará novas skills que os motoristas, atualmente, não possuem.
Daniela Lourenço concorda com esta visão, indicando que “o que antecipamos é uma evolução nas funções e não uma substituição total dos humanos pelas máquinas”. A supervisão humana ainda será necessária apesar da condução autónoma. Ainda que os veículos autónomos possam dar resposta ao envelhecimento da força de trabalho e à escassez de talento mais jovem, “devemos ter em conta que o trabalho diário dos condutores de camiões abarca muitas tarefas complexas que vão além da condução de camiões, como as inspeções, a segurança da carga ou a interação com os clientes, e que exigem capacidade de análise e discernimento humano, sendo por isso mais difíceis de automatizar do que a própria condução em estrada”.
A visão de quem está no terreno é a mais distante de todas as outras. O motorista da Transportes Rama, Luís Marques da Silva, não acredita que os veículos autónomos possam vir a ser uma realidade, pois indica que não é considerado o trânsito, e a importância do motorista para o contornar. Considera “impossível” a circulação de um veículo autónomo, em hora de ponta, no centro de Paris, por exemplo. “É sempre preciso intervenção humana”.
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