Foi no início de 2024, cerca de oito anos desde o início das operações em Portugal, que a Medway começou a receber as primeiras locomotivas elétricas Stadler Euro6000, resultado de um investimento superior a 90 milhões de euros realizado no final de 2021, para a aquisição de 16 novas locomotivas e 113 vagões.

Carlos Vasconcelos, presidente da Medway, realçou durante a cerimónia que este investimento nas novas locomotivas vem reforçar a aposta da empresa em sustentabilidade, trazendo uma redução média de 70% de emissões de CO2 eq, quando comparado com o transporte rodoviário, sendo que cada comboio consegue retirar cerca de 40 camiões das estradas.

Durante o seu discurso, realçou ainda a necessidade de uma política de apoio ao setor, indicando mesmo que “podemos chegar ao extremo de ter uma excelente rede ferroviária onde não circularão quaisquer comboios de mercadorias”.

Em entrevista à SCM, Bruno Silva, diretor-geral da Medway, fala sobre os investimentos que têm planeados para os próximos anos, e nas dificuldades sentidas em Portugal ao nível dos apoios e taxas aplicados ao setor.

SCM – Este investimento feito em 2021 passa por uma estratégia de sustentabilidade que está de alguma forma ligada ao crescimento externo, agora contando com a possível parceria com a Renfe?

Bruno Silva – Este investimento assenta no nosso plano de desenvolvimento e de crescimento a nível ibérico, que iniciámos há três anos. Assinámos o contrato há cerca de dois anos e agora começamos a receber todo o material circulante que nós comprámos. A Renfe faz parte da nossa estratégia e ambição de continuarmos a crescer a posição da Medway, e acreditamos que com a união de esforços com a Renfe, através das suas vantagens e das que nós aportamos, podemos acelerar muito esta estratégia.

Se acontecer será ótimo, penso que para ambas as partes, e espero que nós consigamos chegar a um acordo, caso contrário, vamos prosseguir o nosso caminho. Nós temos tido um processo de crescimento sobretudo nos últimos anos em Espanha, o ano passado crescemos 15%, este ano estamos a contar com crescimentos de dimensão equivalente e, em Portugal, estamos otimistas de conseguir fazê-lo, uma vez terminando todo este período de obras do Ferrovia 2020, porque até lá temos dificuldade em fazer muito mais.

Oxalá que haja também políticas sustentáveis e equilibradas entre modos de transporte, que é a situação que nos preocupa neste momento, e cujos efeitos no curto prazo levam a uma desmotivação dos clientes do uso da ferrovia para o uso da rodovia, porque os cujos custos diretos imputados na utilização da infraestrutura baixaram significativamente para a rodovia e aumentaram significativamente para a ferrovia.

Como foi o caso das taxas de acesso à APS que, entretanto, já foram retiradas devido a esta pressão do setor e à desvantagem face à rodovia?

Eu acho que é muito importante reconhecer aquilo que foi o diálogo, o trabalho feito e a decisão tomada pela Autoridade do Porto de Sines, e sobretudo pelo seu presidente, porque tinham toda a legitimidade de aplicar taxas que lhes permitam recuperar e pagar os gastos que têm com os investimentos do porto, uma vez que a Autoridade Portuária tem de ser autossustentável, mas, efetivamente, a incapacidade de o fazer para os dois modos gerava aqui um fator discriminatório relevante, entre a utilização da rodovia e da ferrovia. Aquilo que sempre defendemos é que não somos contra o princípio. Somos sim não favoráveis a que se faça só para um dos modos, e que não se apliquem os mesmos critérios a todos, porque aí não estaremos em efetiva igualdade concorrencial.

A APS reconheceu isso, e a AMT também teve um papel importante, e eu penso que é um resultado muito positivo, que nos permite continuar a entrar no caminho da procura por competitividade do transporte ferroviário. Temos essa boa notícia, mas infelizmente a má de que, para 2024, surge um aumento de 23% na taxa de uso da infraestrutura ferroviária, portanto, da portagem ferroviária. Apesar de terem havido propostas em orçamento de Estado para o congelamento da taxa para 2024, tal como foi incorporado redução de 30% de portagens para 2024 na rodovia. Infelizmente, para a rodovia seguiu para a frente essa redução de 30%, mas para a ferrovia foi rejeitado o não aumento de 23%. Foi votado contra por dois partidos e manteve-se o aumento.

Acabamos por ter aqui uma política de carbonização, quando o objetivo era descarbonizar a mobilidade. Estamos a agir no sentido contrário.

E relativamente ao terminal do Lousado, em que estado se encontra, quando é que pretendem que esteja concluído e as vantagens competitivas que irá trazer?

Lousado vem dar resposta a uma necessidade crescente de procura que nós estávamos a assistir antes do período de Covid. A ferrovia viveu anos de desenvolvimento entre 2018 e 2020, e a zona norte, sobretudo a zona onde está Lousado, é uma das zonas com maior dimensão industrial e exportadora do país, e a capacidade existente já era limitada.

O que Lousado trará é capacidade a nível de intermodalidade, rodovia-ferrovia, para podermos servir muito melhor aquela região ao nível de comboios, seja a nível da conexão para os portos, e aqui temos de falar de Sines, Leixões, Lisboa, e dos outros portos nacionais, porque mesmo Leixões, que está introduzido dentro da malha urbana, conseguir escoar a sua carga e poder ter um ponto satélite onde a carga possa transitar para o camião e fazer as suas entregas, evitando a passagem da malha urbana, que também é uma grande vantagem, mas é, todavia, um projeto muito desafiante.

Trata-se de um terminal de grande dimensão, inserido numa localização desafiante, e do ponto de vista ambiental tem sido um processo bastante desafiante, com pontos que nós temos vindo a tentar ultrapassar a cada etapa. Também ao nível da conexão com a rede ferroviária fomos tendo bastantes desafios, é um trabalho de longa duração que se tem vindo a fazer com a IP, mas que infelizmente não anda aos ritmos que nós queríamos. Nós, em Portugal, ainda demoramos muito tempo nestas etapas até começarmos a conseguir concretizar a obra, mas mantemo-nos convictos da sua realização, esperemos que durante este ano possamos ter as condições para iniciar a obra. Envolve muitos processos de autorização, de permissão, de avaliação… são processos muito complexos e muito demorados.

Outro dos planos para 2025 é o início de operações em França. O que pode avançar sobre esta estratégia?

O nosso processo, desde 2016, caminhou por um objetivo de internacionalização da nossa atividade. O mercado mais natural era uma implementação com maior dimensão no mercado ibérico, portanto foi o primeiro passo, e em 2018 iniciámos em Espanha. Este reforço de frota interoperável veio trazer-nos uma posição ibérica de maior relevo.

A rede ibérica, é importante dizer-se, tem uma grande conectividade muito assente na bitola ibérica e, portanto, nós temos uma estrutura, em que investimos muito nesse desenvolvimento para conseguirmos garantir a conectividade entre os vários pontos. França, seria o mercado natural a seguir. Nós achamos que este ano será um ano de maior consolidação em Espanha, e França é a continuidade, inclusive, da ligação do corredor atlântico que liga Portugal, Espanha, França e Alemanha.

França tem tido vários desafios nos últimos anos, envolvendo muitas obras no lado francês da fronteira, que têm vindo a ser desenvolvidos, portanto começa a haver uma abertura. Há também, no próprio mercado francês, um interesse de abertura mais do mercado das mercadorias e desenvolvimento desse mercado, há políticas francesas para fomentar isso, o que também capta a nossa atratividade, tal como no mercado espanhol, em que o governo tem políticas concretas para o desenvolvimento da ferroviária, daí também a nossa grande aposta. Para França, investimos já em oito locomotivas, muito parecidas com esta, que estamos aqui a ver hoje, que vamos receber na segunda metade de 2025 e, portanto, estamos a tratar todo o processo de estruturação para que, assim que recebamos as locomotivas, nós possamos ter capacidade de iniciar os primeiros comboios no lado francês.

Tocou num ponto importante: o desafio da bitola ibérica. Porque, ao lançar-se em França, existe ainda esta questão das dimensões dos carris.

Sim, o investimento que nós fizemos em locomotivas, estas oito novas, são de bitola europeia, que vão permitir circular em todo o corredor mediterrâneo do lado espanhol e em toda a rede ferroviária em França. No corredor de Irun, nós vamos ter capacidade de fazer a interligação por trocas na fronteira, transferindo a carga de um comboio para o outro, como hoje já se faz de forma muito natural. Também hoje, apesar de termos a mesma bitola, é muito regular nas nossas operações internacionais não chegarmos à fronteira e trocarmos tração, portanto, hoje muitos dos nossos comboios, a locomotiva que começa em Portugal não é a mesma que tem continuidade em Espanha e vice-versa.

Temos é de tentar tirar o maior partido dos dois tipos de redes e que os investimentos tragam sempre maior competitividade ao transporte e não o contrário, que não comece a segregá-lo e, no fundo, a condicionar. As oito locomotivas vão-nos trazer uma frota mais flexível, com locomotivas UIC, locomotivas ibéricas.

Sobre agora a estratégia de 2024, quer avançar já alguns investimentos ou algumas áreas a explorar um pouco mais?

Em 2024 temos 22 novas locomotivas a entrar na nossa frota, portanto, temos estas 16 e temos seis unidades adicionais diesel que receberemos no final do ano, no final do terceiro/quarto trimestre.

Temos uma grande aposta de crescimento no mercado espanhol, sobretudo, porque infelizmente no mercado português há pouca capacidade para fazer muito mais com o dilatar das obras ferroviárias e, portanto, teremos de ser pacientes, mas o mercado espanhol trouxe-nos uma grande aposta e, aquilo que vamos tentar é focar o crescimento ao ritmo que temos tido, portanto, crescimento a dois dígitos no mercado de Espanha e apostar muito na capacidade de interligação nas linhas internacionais. Aí, dependendo de quando é que temos o corredor norte aberto, quando é que temos o corredor sul em condições de operar e penso que este ano ainda vai ser um desafio termos um crescimento grande do lado português nesse aspeto.

Mas criando uma boa base em Espanha, eu penso que estaremos também muito melhor preparados para serviços internacionais entre Portugal e Espanha.

Tal como falou, Espanha acaba por ser um mercado mais natural por causa da estratégia de fomento da ferrovia face à estratégia portuguesa, não é?

Sim. Portugal não tem uma estratégia para fomentar o transporte [ferroviário] de mercadorias. Portugal tem uma estratégia concreta de melhoria significativa da infraestrutura ferroviária.

Aí sim, está em implementação, e há que reconhecer todo esse mérito. Mas não temos uma estratégia para a mobilidade ferroviária de mercadorias. Espanha tem uma grande estratégia, bem definida, já vamos para o terceiro ano de implementação e começa-se a ver resultados concretos.

Houve um investimento muito grande do setor, a par dos incentivos que foram dados pelo Governo. Houve um investimento brutal em material circulante porque houve uma aposta de compensar parte desse investimento, isso replicou-se mais do que duplicação do investimento global injetado no setor. Só nós, através desse investimento, adicionámos oito locomotivas adicionais.

Temos também um plano de investimento de 450 vagões para o mercado espanhol que vem centrado nos incentivos dados pelo Governo espanhol e, para além de uma taxa de utilização de infraestrutura oito/nove vezes mais baixa do que em Portugal, tem uma política de ecoincentivos para equilibrar a discriminação que há face à cobertura das externalidades, ou seja, as taxas cobradas na ferrovia eram, ainda assim, muito superiores àquilo que era cobrado na rodovia face aos efeitos de custo que tinham para a sociedade. E, portanto, Espanha, ao reduzir esta diferença, através de uma política de ecoincentivos, também ajudou a que haja uma dinâmica muito maior a nível de crescimento ferroviário.

Eu acho que nós em Portugal nós não temos nada disso estruturado, e acho que é fundamental, porque, como dizia hoje o nosso presidente, Dr. Carlos Vasconcelos, podemos estar aqui a correr o risco de investir mais de 2 mil milhões de euros na infraestrutura ferroviária e depois não conseguirmos ter comboios, não conseguirmos atrair atratividade.

E acho que é aqui onde, por vezes, estão as causas da falta de atratividade. Até, inclusive, para haver mais operadores ferroviários, que é bom para a dinâmica e a competitividade do setor.