É difícil nomear um momento da História em que o transporte marítimo não fosse absolutamente fundamental, principalmente nas trocas comerciais entre países. Atualmente, cerca de 80% do comércio global viaja pelos mares. No entanto, estão a surgir barreiras que o dificultam. Os dois principais canais de transporte, o do Panamá e do Suez, estão sob alerta. O primeiro devido à seca, e o segundo devido a ataques a navios, espoletados pelos rebeldes Houthis. Rotas certas tornaram-se inseguras. Os armadores deparam-se com maiores tempos de trânsito e, por consequência, sobem os custos. Após uma pandemia, a escassez de contentores, uma guerra no Leste da Europa e outra no Oriente, e agora as perturbações nos canais marítimos, só permitem chegar a uma conclusão: a disrupção existe e permanece.
“Preocupação” deverá ser a palavra certa para descrever o cenário atual do comércio marítimo global. Duas das principais artérias marítimas de passagem estão a enfrentar sérios constrangimentos. No caso do Canal do Panamá, que facilita o trânsito entre os oceanos Atlântico e Pacífico, e representa 6% do comércio marítimo global, uma grave seca está a afetar a sua operacionalidade diária. A falta de chuva é o principal problema que assola o canal, fazendo com que haja um défice de três metros cúbicos de água por dia nos reservatórios e nos lagos Gatún e Alhajuela, que fornecem água doce às eclusas do canal. Antigamente passavam pelo canal uma média de 40 navios por dia. Atualmente, só é permitida a passagem de 24. A Autoridade do Canal do Panamá (ACP) não só implementou a diminuição do tráfego, como também a redução do calado dos navios para 44 pés, dois a menos dos permitidos anteriormente. Estes ajustes também se devem ao facto de os lagos que fornecem água para o canal, também abastecerem cerca de 60% da população do país. Aliado a isto, há também o problema do aumento dos preços das travessias, devido aos limites da passagem.
E porque um mal nunca vem só, há mais um canal que está a causar constrangimentos ao transporte marítimo: o do Suez. O final do ano de 2023 ficou marcado por uma série de ataques a navios mercantes, a partir da costa do Iémen, pelos Houthis, um grupo rebelde iemenita apoiado pelo Irão. Os ataques estão relacionados com o conflito entre Israel e a o Hamas, grupo radical islâmico do qual os Houthis são apoiantes. De acordo com o Diário de Notícias, o grupo iemenita indicou que atacaria qualquer navio que viajasse de ou para Israel, em forma de protesto contra “a chacina, a destruição e o cerco” em Gaza, em solidariedade para com o povo palestiniano. Os ataques têm partido do estreito de Bab al-Mandab, que estabelece a ligação do Mar Vermelho com o Golfo de Aden. Até à data já se registaram mais de 20 ataques a navios mercantes, independentemente de onde tenham partido ou para onde se destinam.
Tendo em conta este cenário, os principais armadores, como Maersk, MSC, CMA CGM, ou Hapag-Lloyd, viram-se obrigados a alternar o percurso, tomando a rota pelo Cabo da Boa Esperança, na África do Sul. Trata-se de um desvio de 9.000 quilómetros, que resulta em maiores tempos de trânsito e, consequentemente, mais custos associados. De forma a proteger o tráfego marítimo naquela zona, os EUA estabeleceram uma coligação internacional designada Operation Prosperity Guardian, composta por vários países. A aliança tem vindo a ripostar os ataques efetuados pelos Houthis, mas o clima de instabilidade tem vindo a permanecer no Mar Vermelho.
Quais os impactos?
“O Canal do Panamá é um ponto nevrálgico em termos de transporte marítimo mundial, assim como o Mar Vermelho porque é onde se faz a ligação ao Canal do Suez, e é por onde passa uma das rotas mais importantes, a que liga o Extremo Oriente à Europa”, refere Fernando Cruz Gonçalves, coordenador da Licenciatura em Gestão Portuária, da Escola Superior Náutica Infante D. Henrique.
As três grandes rotas são a do Far East, que liga o Extremo Oriente à Europa, a rota Transpacífica, que conecta o Extremo Oriente às costas Este e Oeste dos EUA, e a rota Transatlântica, que vai desde os EUA até à Europa. Os operadores marítimos estão agora a efetuar alterações nas rotas, passando pelo sul de África, evitando tanto o Canal do Panamá, como o do Suez. “Alguns dos portos que eram alimentados no âmbito do Mediterrâneo, como é o caso da Itália e Espanha, através da África do Sul, acabam por ficar um pouco “fora de mão” da rota marítima”, explica Raul Magalhães, presidente da Associação Portuguesa de Logística (APLOG).
Raul Magalhães salienta que se a situação no Mar Vermelho se arrastar por mais meses, pode vir a sentir-se alguma pressão na disponibilidade dos navios. “As rotas marítimas são muito conservadoras, não há tanta plasticidade na definição de rotas como na rodovia. É uma indústria que tem contratos muito definidos do ponto de vista da utilização de portos, cumprimento de tempos, tem ramificações até aos transitários e agentes de navegação e, portanto, há uma preocupação de respeitar os acordos”.
Fernando Cruz Gonçalves corrobora o discurso de Raul Magalhães, indicando que para desempenhar a rota pelo Cabo da Boa Esperança, transportando a mesma carga, são precisos mais navios. “Estamos a reduzir a oferta disponível”, garante, e acrescenta ainda que “os picos do mercado estão muito associados a aumentos da procura, e não deixa de ser curioso que, neste caso, não é propriamente o aumento da procura que está a determinar as taxas de frete elevadas, mas é exatamente o problema de restrições a nível da oferta”. Fernando Cruz Gonçalves considera os acontecimentos recentes como uma “tempestade perfeita”: os constrangimentos no Canal do Panamá e no Canal do Suez, juntando ainda a tarifação das emissões poluentes no transporte marítimo implementada a 1 de Janeiro de 2024. Tudo isto se resume a uma coisa: aumento das taxas de frete.
Todos os estes constrangimentos impactam a atividade dos transitários. Como afirma António Nabo Martins, presidente executivo da Associação dos Transitários de Portugal (APAT), “a vida do transitário não tem dois dias iguais. Sem qualquer aviso dá-se uma nova disrupção e lá somos forçados, novamente, a encontrar a melhor alternativa”. E a melhor alternativa nem sempre é a mais fácil, competitiva ou a que a o cliente melhor entende. “Ultimamente temos vindo a falar muito de uma logística preventiva, ou seja, do ato de planeamento e antecipação que permita perceber de que forma podemos arquitetar planos B, alternativos à normalidade das cadeias logísticas”, garante António Nabo Martins. Ainda assim, se o conflito perdurar, a alternativa será manter a rota pelo Cabo da Boa Esperança.
Apesar de, para já, o cenário no Mar Vermelho não ser animador, não estamos numa altura tão crítica como poderia ser, por exemplo, em novembro ou dezembro, como explica Raul Magalhães. “Este é um efeito que se vai sentir fundamentalmente no primeiro trimestre que, para a maior parte das economias da Europa e também dos EUA, é, normalmente, um período pouco tenso em termos de compras e stocks”. Se ocorresse em outubro ou novembro, por serem os meses que antecedem o Natal e, por isso, se movimenta muita mercadoria, teríamos “um problema muitíssimo maior”.
Ainda assim, destaca os setores que deverão sentir um maior embate: o têxtil, alimentar, produtos para a casa, eletrónica e os combustíveis. “Pelo Canal do Suez passam cerca de 23.000 ou 24.000 embarcações por ano, e do conjunto de transporte de petróleo, a nível global, 10% passa por lá. No gás, 8%”, indica. Portanto, este setor sofrerá, de facto, algum impacto que afetará diretamente a economia. No que diz respeito à eletrónica, segundo Raul Magalhães, “não há razão para haver disrupções nas cadeias de abastecimento por falta destes produtos porque, pelas suas dimensões e valor unitário intrínseco, suportam bem uma mudança do marítimo para o aéreo”. Este tipo de produtos, diga-se, aparelhos eletrónicos e semicondutores.
“Não podemos deslocalizar áreas que são estratégicas”
O que se pode esperar daqui para a frente? Esta é uma pergunta muito difícil de responder, pois não há evidências sobre o cessar do conflito no Mar Vermelho, ou sobre o aumento dos níveis da água do Panamá. Porém, há aqui possíveis soluções que podem trazer alguma esperança.
Raul Magalhães começa por referir que o Egito fez investimentos para o alargamento do Canal do Suez e, portanto, conta com a sua utilização para “o equilíbrio das suas finanças enquanto país, e para pagar aos credores que gastaram o dinheiro para o alargamento”. Assim, deposita expectativas neste que “é um país importante no contexto daquela região, e que, por isso, tem a capacidade de poder influenciar uma retomada da normalidade o mais depressa possível”. Além disto, identifica uma outra questão relacionada com a China. Os Houthis indicaram desde logo que não atacariam navios russos ou chineses. A Rússia, atualmente, tem pouca expressividade comercial com outros países, mas o mesmo não se passa com a China. Segundo o presidente da APLOG, “a China não tem conseguido impor-se no transporte marítimo porque empresas como a MSC ou a Maersk dominam o mercado, mas agora tem uma oportunidade de ouro porque vão conseguir garantir os tempos de trânsito que eram praticados há dois meses”. Assim, acredita que não haverá “grandes disrupções” como se verificou, por exemplo, no período pós-pandemia.
Por outro lado, há ainda uma outra possibilidade que reduz os tempos de trânsito, mas não os custos. Atualmente, os navios navegam em slow steaming que, de acordo com Fernando Cruz Gonçalves, “consiste em navegar abaixo da velocidade de cruzeiro”. Esta já é uma prática recorrente no mercado. “Os operadores marítimos perceberam que tinham de racionalizar os custos e, portanto, uma redução na velocidade dos navios traduz-se numa significativa redução do consumo”, explica. No entanto, isto pode vir a mudar. Caso o conflito perdure no Mar Vermelho, as empresas de transporte marítimo podem colocar os navios a navegar mais rápido, mas isto não só aumenta os custos associados, como também deverá contribuir para o aumento das emissões de carbono.
Sobre este tema, Raul Magalhães afirma que “uma das razões pelas quais os navios andam devagar é por uma questão de custos. É uma decisão da indústria reduzir a velocidade a que eles se movimentam no mar”. Se houver algum atraso, as embarcações podem aumentar a velocidade, assim como os clientes, se precisarem que a sua carga chegue ao destino com urgência, têm que pagar mais. Se o problema no Canal do Suez se mantiver, “as companhias marítimas irão aumentar a velocidade para, em vez da diferença de 12 dias de tempos de trânsito, passar para uma diferença de cinco ou seis dias, mas em contrapartida o que vão fazer é aumentar o custo do frete”, sublinha. A pegada carbónica também está implicada nesta decisão. O transporte marítimo, pelo seu gigantismo, contribui muito para as emissões de CO2 e, quanto mais depressa navegarem, mais toneladas de combustível consomem e mais ciclos de limpeza de tanques serão necessárias.
Todas estas disrupções poderão vir a mudar o paradigma da globalização? De forma a mitigar riscos, as empresas poderão começar a procurar fornecedores mais perto de casa? Poderemos vir a assistir a uma mudança de paradigma? Raul Magalhães acredita que as dependências irão sempre existir. “Ao contrário do que se possa pensar, o comércio global continua a ter uma fortíssima preponderância nas economias globais, quer sejam dos países produtores, neste caso o comércio da Ásia, quer sejam os países que exportam, nomeadamente da Europa”. Haverá sempre disrupções, e é “falso” pensar-se que ao resolver um conflito, ficaremos anos sem que surja outro. “Vamos ter sempre episódios, de ano para ano, que perturbarão o normal funcionamento do comércio internacional. A boa notícia é que isto é a prova de que a globalização continua a existir”, assume. Ainda assim, reconhece que se nota um esforço por parte das empresas portuguesas em procurarem fornecedores mais próximos dos locais de consumo, mas considera que há setores em que “isto é impossível”.
“Não podemos deslocalizar uma série de áreas que são estratégicas”, concorda Fernando Cruz Gonçalves. A deslocalização das unidades produtivas é feita em primeira-mão para reduzir os custos de mão-de-obra. Mas no dia em que o acréscimo dos custos de transporte, associados à deslocalização da produção, for superior à redução dos custos de produção, não faz sentido deslocalizar. Aliado a isto, considera importante que haja níveis de stock mais altos, para colmatar uma eventual falha de fornecimento.
Por sua vez, António Nabo Martins, indica que “é verdade que pode acontecer” uma eventual desglobalização, uma vez que já se fala muito em nearshoring em que a produção está localizada mais perto dos locais de consumo. “A aposta em países mais próximos da Europa, do Norte de África, igualmente com mão-de-obra barata, mas com sistemas políticos mais consolidados e com menos convulsões, serão, seguramente, uma solução para a transferência de alguma indústria da Ásia”, afirma. Destaca ainda a “tão falada reindustrialização da Europa”, mas ressalva que este é um processo que não demora menos do que 20 ou 30 anos, pelo que, sugere que seria “cauteloso encontrar caminhos equilibrados entre esta eventual mudança e a atualidade”. Salienta ainda que alguns armadores estão até a encomendar navios mais pequenos, “o que pressupõe uma aposta maior no short sea e na ferrovia na Europa, movimentando as cargas entre os portos do Sul e do Norte, e o centro da Europa”.
A aposta na ferrovia poderá ser uma eventual solução, em que as ligações marítimas do Oriente possam ser feitas até Portugal, e daqui para a Europa via ferroviária. “Eu prevejo que o transporte internacional de mercadorias por via ferroviária, pelo menos na Europa, possa vir a ter um aumento exponencial. Em primeiro lugar porque falamos de um modo de transporte muito sustentável e, em segundo lugar, porque, na Europa, temos alguns armadores a apostar seriamente na ferrovia”, como é o caso da Medway (em alguns países Medlog), que faz parte do Grupo MSC, e a Continental Rail que integra o Grupo CMA-CGM. Dependendo das estratégias individuais, o presidente da APAT considera que esta aposta pode contribuir para uma estratégia mais global na forma como o transporte ferroviário de mercadorias é encarado na Europa. “Pena é que a União Europeia, com a sua veia de reguladora nata, não entenda que este negócio precisa muito mais de ações concretas do que apenas de regulação”, refere.
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